Vamos começar pelo meio: – nos EUA, que tem uma população de 300 milhões de habitantes, há 7.000 cargos em comissão ocupados por particulares sem concurso público; – no Chile, que tem 17 milhões de habitantes, há 800 cargos em comissão ocupados por particulares sem concurso público; – na Holanda, que tem 16 milhões de habitantes, há 700 cargos em comissão ocupados por particulares sem concurso público; – na Inglaterra, que tem uma população de 50 milhões de habitantes, há 500 cargos em comissão ocupados por particulares sem concurso público; – na França e Alemanha, que têm 65 milhões e 81 milhões de habitantes respectivamente, há apenas 300 cargos em comissão ocupados por particulares sem concurso público. O Brasil, que tem uma população menor que a os Estados Unidos (198 milhões de habitantes), há 600 mil cargos em comissão ocupados por particulares sem qualquer tipo de concurso público… A regra do art. 37, II, CF aponta para a necessária preferência de concurso público para investidura e provimento de cargos públicos. E o art. 37, V, CFdetermina que os cargos em comissão (ou confiança) sejam transitórios, sendo as funções de confiança, estas sim, por imperativo constitucional expresso, exercidas apenas por concursados de carreira. Ou seja, a regra dos cargos em comissão é a transitoriedade. Todavia, o que se vê no Brasil é uma burla à Constituição às avessas, um horripilante número de 600 mil servidores que não são servidores de carreira concursados, mas ocupam cargos que deveriam ser ocupados por servidores de carreira concursados. A Emenda 19/98 tentou corrigir essa perversão do sistema, ao alterar o inc. V, art. 37, CF, mas não conseguiu. A Emenda determinou que um percentual mínimo dos cargos em comissão fossem ocupados por servidores concursados, mas poucos Estados e Municípios, e também a União, legislaram para dizer qual seria este percentual mínimo. Há notícias de que alguns Estados, como o RJ, são um pouco mais íntegros e preenchem seus cargos com mais de 60% de servidores concursados. A regra é o concurso público, o cargo em comissão a efemeridade. O PL 369/2008 andou muito bem recentemente. Foi aprovado pela CCJ e pelo Senado, e falta apenas o aval da Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei em questão proíbe a realização de concurso público para cadastro reserva, apenas admitindo “cadastro reserva” se os candidatos aprovados sobejarem o nº de vagas. O que é um concurso público para cadastro reserva? Nada. Sempre foi um nada jurídico. Você paga, presta o concurso público, mas o cargo não existe ou não está disponível. Aí você fica esperando, esperando, cria expectativas e o prazo do concurso expira. Outra notícia sensacional no Brasil: nosso STJ deu posse a uma candidata ao professorado público que, após passar em concurso público, não tomou posse porque não havia o nº de vagas previstas no Edital. O nº de vagas destoava do nº de vagas previsto em lei, que era menor. Mas o absurdo não parou por aí: durante o prazo de validade deste concurso, foram contratados particulares temporários, que são particulares contratados transitoriamente por interesse público (37, IX, CF), sem concurso. No caso da professora, os temporários foram contratados e iriam realmente lecionar no lugar dela, furando a fila… O STJ foi firme e asseverou: a expectativa de direito passa a ser direito certo quando o Estado faz passar na frente dos concursados aprovados, ainda que aguardando suas vagas, os particulares temporários. O STJ fez valer o tão desrespeitado 37, IV, CF. Apenas admitimos particulares se enfiando na Administração Pública para ocupar cargos em comissão se tais cargos forem exclusivamente de altíssmo escalão ou, em casos motivados e justificados, cargos muito técnicos. É o que fazem os países cuja dignidade é exercício rotineiro. Apenas admitimos como ocupantes dos famigerados cargos em comissão ou confiança, sem prévio concurso público de provas e títulos, somente Ministros ou Secretários de Estado ou Municípios (ou distritais), exclusivamente como agentes políticos. Os particulares, metidos no sistema público, favorecem a corrupção e toda sorte de malversação que exsurge quando interesses particulares e interesses públicos coabitam no Estado e se misturam. O Estado é um locus de poder, e não de negociata. Na verdade, o que ocorre no Brasil é uma prática imoral, realmente contrária ao princípio da moralidade, este insculpido no art. 37, caput, CF, de se lotear cargos públicos que deveriam ser ocupados apenas por servidores públicos concursados. É o famoso cabide de empregos, com nossos impostos. Cargo em comissão é a exceção da exceção. Ou, como diria Caetano, o avesso, do avesso, do avesso… A falta de moralidade deixa o país numa zona jurídica cinzenta, foco de zombaria por parte dos países mais desenvolvidos. Sem falar em, não raro, no esforço e estudo de 5 a 10 anos que um candidato hipoteca para passar num concurso público… O loteamento de cargos em comissão ocorre da seguinte forma: se o PT ganha uma prefeitura ou governo estadual (ou federal), loteiam-se os cargos em comissão para os filiados ao PT e amigos do PT. Quando o PSDB ganha na eleição seguinte, mudam-se os lotes: os mesmos cargos em comissão passam para os psdbistas e sectários de plantão. Quando o PMDB ganha ao depois, pulam fora os psdbistas. E assim vai. Os cargos em comissão são demissíveis ad nutum, ou seja, seus ocupantes são exonerados sem prévio processo administrativo. Não há estabilidade nos cargos em comissão (nutum significa nuto, que significa “desejo”, “arbítrio” ou “vontade”; um segundo sentido é “consentir”). O Prefeito nomeia uns 200 particulares sem concurso ao seu exclusivo nuto. Não há estabilidade nos cargos em comissão, eu disse. Será mesmo? Imagine uma cidade onde o mesmo partido elege e reelege alguns candidatos por 7 eleições seguidas. Um assecla qualquer deste partido dominante nas eleições locais poderá ficar por trinta anos no mesmo cargo em comissão – cada cargo em comissão duraria 4 anos. É uma boquinha interessante, não é mesmo?! É uma estabilidade lato sensu. Tenha um padrinho e filie-se a um partido! O princípio da proporcionalidade também é fortemente vulnerado no Brasil no que diz respeito aos cargos em comissão. O princípio da proporcionalidade não existe expressamente na CF, mas só implicitamente. Diz o princípio que devemos ponderar interesses públicos e privados em conflito e encontrar a medida adequada, necessária e justa. Para mim, data maxima venia dos milhares que sabem muito mais do que eu, não haveira o que ponderar quando se tratasse de interesse público… Outro princípio que é agredido é o princípio administrativo da investidura. A criação indiscriminada e o loteamento partidário dos cargos em comissão frauda a legítima investidura do servidor concursado. A investidura é a etapa final do concurso público, em que o servidor toma posse. Cuidado: alguém ocupará o seu cargo público sem investidura… O Brasil está descontrolado quanto à distribuição cancerígena de cargos em comissão nas fileiras estatais. A falta de transparência nas nomeações é total. Todos os estudos atuais revelam inchaço da máquina pública com aproveitadores não concursados e apenas filiados a partidos políticos à espreita (às vezes você nem precisa se filiar). Seria preciso muita força para coibir isso. Eu tenho vergonha disso. Em verdade, há um clientelismo institucional. O termo “clientelismo” significa “proteção dada pelo patrão, em troca de apoio ou algum tipo de laço e fidelidade”. Ou seja, além do apodrecimento do brio e da honra que o Brasil assiste há 500 anos, com a moral invertida pela aceitação serena da corrupção e malandragem, os cargos em comissão distribuídos por partidos são um câncer moderno que infesta a máquina pública. Veja-se voto do Ministro Lewandowski no AG no RE 365.368/SC, de 22.05.2007: EMENTA: AGRAVO INTERNO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ATO NORMATIVO MUNICIPAL. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. OFENSA. INCOMPATIBILIDADE ENTRE O NÚMERO DE SERVIDORES EFETIVOS E EM CARGOS EM COMISSÃO. I – Cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam. II – Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local. III – Agravo improvido. Nosso Brasil é um cabidão de empregos públicos, e isto está errado. Parafraseando Rui Barbosa, em “Oração aos Moços”, às vezes nos esquecemos da honra, damos risada da honra, damos risada das virtudes, damos risada do caráter, damos risada da honestidade, probidade e decoro, damos risada do decoro e da dignidade, damos risada de nós mesmos no final porque esquecemos daquilo que tínhamos de lembrar desde sempre. A discricionariedade na escolha dos “negócios” públicos tem limites. Enfim, chega. Você já se filiou? Então. Vai um carguinho aí?!
Fonte: Antonio Pires